sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Conversa com um especialista

"Mas é elétrica!?!?!?", perguntou o baixinho atarracado com ar de incredulidade e cara de poucos amigos.

"É", respondi.

"Ô Rogério, vem aqui que eu não sei mexer com esse negócio, não!", gritou para dentro da bicicletaria, sem olhar para mim.

"Era o que me faltava", pensei, fazendo esforço para não transparecer a minha raiva.

O meu humor também não era dos melhores. Vinha de duas longas caminhadas, vestido de camisa comprida e calça social, empurrando a bike com o pneu traseiro furado.

Na Marquês de São Vicente, pouco depois de deixar o trabalho, o trânsito parou e eu tive a brilhante idéia de cortar caminho pela calçada visivelmente detonada. O arroubo de mountain bike motorizado me custou o pneu.

Primeiro tive de andar quatro quarteirões até uma borracharia na mesma avenida, onde descobri que a câmara tinha sofrido vários furos. O Borracheiro colocou três remendos, mas o reparo resisitiu poucos metros. Quando estava em cima do viaduto da Lapa, o pneu murchou de novo e eu tive de andar da Lapa de Baixo até a rua Tonelero, onde tive a calorosa recepção.  

Rogério chegou e, diante das circunstâncias,  tratei de ser o mais simpático o possível, adiantando argumentos para convencê-lo a instalar uma câmara nova: "olha não é tão complicado, o fio entra no motor por aqui, mas, se o senhor soltar esses parafusos, dá para trabalhar pelo outro lado da roda tranquilamente".

Rogério ficou parado me olhando.

"Não é tão complicado" insisti.

"Não, isso é fácil", ele sorriu, "difícil é colocar a bicicleta lá dentro".

De fato, a bicicletaria estava abarrotada, com magrelas até na calçada. Mas, diante do sinal de que o conserto poderia ser feito, relaxei. Entrei na loja e fui tomar uma água, ainda pingando de suor. Lá dentro, o tal baixinho atarracado, que mais tarde descobri ser meu xará, conversava indignado com um outro cliente:

"Sente o peso desse troço", dizia apontando para uma bicicleta de mulher. "Como é que ela (se referia à cliente) daquele tamaninho vai pedalar uma coisa dessas? Ainda bem que ouviu os meus conselhos e comprou uma dobrável aro 20".

O outro ria com o jeito de turrão, de Ricardo e, só aí, pude perceber que ele não tinha sido bravo comigo em particular.

Rogério também ria: "meu pai morreu com o coração desse tamanho" fazia um sinal com as duas mãos diante do peito para provar o físico de atleta do pai. "Pedalava uma bicicleta bem mais leve que essa, imagina o esforço que ela não tá fazendo ".

Quando ele falou isso, comecei a prestar mais atenção no lugar. As bikes empilhadas, as ferramentas meticulosamente espalhadas pela bancada, o cheiro de graxa, a maneira pela qual aqueles dois irmãos circulavam pelo lugar, o jeito deles apertarem porcas, parafusos, girarem as correntes...

Tudo ali transpirava bicicleta!

Rogério pôs minha bike na bancada e começou a soltar os parfusos da roda traseira: "eu acho que isso aqui não é nem uma moto, nem uma bicicleta, fica no meio do caminho", disse repetindo o mesmo argumento que eu já ouvi várias vezes.

Expliquei que queria adotar a bike no dia-dia, mas que tinha de vestir terno e gravata e o quanto a bicicleta elétrica me possibilitava conciliar os dois estilos de vida. Também tratei de esclarecer que a bicicleta elétrica não alterava o porte, a velocidade, nem a experiência ao dirigir de uma bicicleta comum.

Ele aceitou os argumentos com certa resignação, mas não deixou de criticar:

"Mas eles precisam trazer esse lixo para o Brasil? Pega aquela revista alemã ali e dá uma olhada o que é bicicleta elétrica de verdade".

Na montanha de papéis que ele apontava, tinha catálogos de peças com marcas de tudo o que é país, revistas especializadas brasileiras, gringas e a tal revista alemã.

Era óbvio que eu estava ensinando o pai nosso para o vigário. Rogério é um especialista, Mais do que isso, um apaixonado por bicicletas.

Na tal revista havia modelos que eu nunca havia ouvido falar e muitos deles com baterias mínimas. Era um verdadeiro compêndio sobre o assunto. Tudo, infelizmente, em alemão.

E ele tinha razão: minha bike ficava anos luz dos modelos fotografados na revista. Não era preciso entender alemão para reconhecer. 

Aproveitei a oportunidade para mostrar o trilho que prende a bateria no quadro. Com a vibração o parafuso se soltava e a bicicleta batia.

Foi a vez de Ricardo entrar em cena. Duma caixinha cheia de parfusos, caçou um parafuso com rosca compatível com o furo. Cortou um pedaço no esmeril e finalizou aplicando um pouco de esmalte de unha para não voltar a se soltar. Mas antes fez questão de me sacanear: "que cor você quer? Tem verde, rosa e arco iris".

Todos rimos. Eu estava em casa.

Comecei a perguntar sobre guidões e selins. Contei da minha intenção de deixar a bike com a cara um pouco retrô. Rogério foi para o computador e abriu a foto de uma bike com aro de madeira e quadro canadense, montada sob medida para um amigo, fornecedor de peças para bicicleta. Era realmente muito bonita.

"Ele chegou com os dois aros de madeira e me falou: 'monta a bicicleta', foi como construir uma casa começando pelo telhado", riu.

Aos poucos, a conversa foi derivando para o ofício do Rogério: "Eu sou a terceira geração aqui. Já tivemos muitos empregados. Hoje sou só eu e meu irmão. Meus filhos fazem outra coisa. Graças à Deus, porque em quinze anos não haverá mais bicicleteiro".

Olhei com cara de espanto. O suficiente para ele se explicar: "Quantas bicicletas de criança você vê aqui?".

Havia uma única peça.

"Essa está aí para vender. O pai deixou porque a filha não anda mais. Passa o dia inteiro no video game". Apontou para o meu peito: "A sua geração foi a última a andar de bicicleta na rua. A Monark e a Caloi deveriam erguer uma estátua para o Spielberg por ele ter feito E.T."

Imediatamente lembrei da minha Caloi Cross Extra que vinha até com o dedinho brilhante do E.T. brilhando na caixa e a alegria sentida ao ganhá-la de aniversário de dez anos.

"Hoje, a gente fica discutindo fazer ciclovia para marmanjo. Tá certo, é importante, mas e a nova geração?".

O conserto chegou ao fim: "dez reais pela câmara nova", ele sentenciou.

Paguei e fui embora um pouco triste pela previsão pessimista de Rogério, mas contente por ter conhecido alguém com tamanha devoção pelo seu ofício.

A partir de hoje, Rogério tem um cliente cativo, ainda que ele torça um pouco o nariz para bikes elétricas.


Esse post vai para o Dionizio, que me apresentou a Ciclo Rondina, que fica na Rua Tonelero, 157

4 comentários:

  1. Emocionou!
    Mas...
    Discordo dele. A vida é feita de "indas e vindas". Se abandonarem a bicicleta amanhã, certamente a ressucitarão depois de amanhã!
    Fica aqui a minha profecia!
    Abração!
    Fabio

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  2. Perfeito o texto Ricardo, meus parabéns por encontrar uma bicicletaria tão renomada, pois a galera q não conhece ou só ouviu falar ou foi em lojas muito requintadas ainda não aprendeu muita coisa......

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  3. Pois é Fabio, profecias são sempre difíceis de provar, mas nos fazem pensar e acho que o Rogério tem um ponto quando questiona o rumo que as coisas estão tomando baseado em suas experiências. Osmar, obrigado pelos elogios.

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  4. Aqui é Geraldo Oliveira, de Porto Alegre.
    Gostaria de poder ir até a oficina do Ricardo para conhecê-lo e parabenizá-lo.
    Gostei muito do teu blog e vou passar a ler frequentemente. Me identifiquei muito.
    Sobre o futuro das bicicletas acredito que quando evoluirmos culturalmente como sociedade, elas voltarão a ter o seu espaço e importância merecidos.
    Neste fim de semana dedicarei tempo para passear de bicicleta com minhas filhas,graças a ti, a quem quero agradecer por isso.
    Um forte abraço!

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